STJ decide sobre regras para ingresso de policiais em domicílio sem mandado judicial e sobre conversão automática de prisão em flagrante em preventiva
Julgamentos são marcos em matéria criminal por serem protetivos de direitos fundamentais de pessoas físicas e jurídicas
Assuntos
Duas decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação de legislação federal no Brasil, são, a nosso ver, merecedoras de especial atenção da comunidade jurídica e da sociedade, pelo caráter amplo das teses vencedoras, as quais podem ser reproduzidas em uma extensa gama de situações e se revelam protetivas de direitos e garantias fundamentais de pessoas físicas e jurídicas.
Julgamento da Sexta Turma do STJ sobre procedimentos necessários ao ingresso de policiais em residências pode ter seu entendimento estendido para proteger escritórios profissionais e empresas
Em 2 de março, ao julgar o Habeas Corpus nº 598.051, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Sexta Turma do STJ estabeleceu cautelas que devem ser obrigatoriamente adotadas no ingresso de policiais sem mandado judicial em residência de indivíduos investigados, de modo a evitar arbitrariedades e fixar limites à ação estatal.
A discussão tem especial relevo diante do artigo 5º, inciso XI da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade do domicílio, e pode se estender, inclusive, a diversos ambientes físicos onde se realizam atividades empresariais.
A Constituição estabelece que só se pode entrar forçadamente na casa de alguém em situação de flagrante delito ou para cumprir ordem de autoridade judicial. Na prática, porém, com frequência agentes policiais alegam “suspeita” qualquer ou “denúncia anônima” de atividades ilegais no interior de imóveis para neles ingressar sem consentimento do dono.
No caso concreto apreciado pelo STJ não havia suspeita fundada da prática de crime antes do ingresso dos policiais na residência, e tampouco houve mandado judicial de busca e apreensão. Nesse cenário, o consentimento do dono ou morador para o acesso é imprescindível – exceto em casos de perigo iminente a si ou a terceiros.
Entendimento pode ser estendido para escritórios e empresas
Importante pontuar que o conceito de residência e sua proteção constitucional se estendem também a escritórios ou sedes de empresas não abertos ao público – o que resulta da interpretação do crime de violação de domicílio, previsto no artigo 150 do Código Penal, cujo § 4º estabelece que a expressão “casa” compreende qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva ou compartimento não aberto ao público, onde alguém exerça profissão ou atividade. Há tempos a jurisprudência do STF é pacífica no sentido dessa proteção estendida.
Por sua vez, o inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal afirma o princípio da não autoincriminação, também previsto no artigo 8º, inciso II, alínea ‘g’ da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Na situação analisada pelo STJ, o morador tinha o direito de não autorizar o acesso dos policiais à sua residência caso considerasse que isso poderia incriminá-lo, sem necessidade de fornecer qualquer justificativa para tal recusa. E deveria ter sido alertado a respeito pelos próprios agentes estatais.
Ao julgar o caso, a Sexta Turma do STJ propôs diretrizes para o ingresso de agentes do Estado em residências. Dentre elas, destaca-se:
- necessidade de declaração assinada pela pessoa que autorize a entrada, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato;
- registro em áudio e vídeo da operação, a ser preservado enquanto durar o processo para atestar a legalidade e a validade do consentimento para o ingresso, desde que livre de qualquer constrangimento ou coação.
O Tribunal assentou, ainda, que a violação a essas regras resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência de ato ilegal e de eventuais provas derivadas, sem prejuízo de eventual responsabilização do agente público que haja realizado a diligência abusiva. Estabeleceu o prazo de um ano para permitir o aparelhamento, treinamento e demais providências necessárias para adaptação dos departamentos de polícia às diretrizes da decisão.
O precedente constitui um avanço na relação entre órgãos estatais e cidadãos, não só em relação à inviolabilidade da residência propriamente dita como também de locais onde se exercem atividades profissionais. Com efeito, empresas de diversos setores já se depararam com práticas policiais abusivas de forçar acesso ao interior de estabelecimentos com base em suspeitas infundadas ou “denúncias anônimas” de ilícitos que depois se revelam inexistentes, como supressão indevida de vegetação, manipulação ou armazenamento indevidos de produtos potencialmente nocivos ao meio ambiente ou à saúde humana, e até mesmo armazenamento de bens de consumo cuja embalagem ou rótulo estaria em suposto desacordo com especificações legais.
A decisão do STJ ajuda a conter abusos, ao mesmo tempo em que garante o desempenho correto das atividades policiais conforme determina a lei.
Julgamento da Terceira Seção do STJ sobre ilegalidade da conversão automática de prisão em flagrante em prisão preventiva
No último 24 de fevereiro, a Terceira Seção do STJ – a qual reúne a Quinta e Sexta Turmas, e assim constitui o principal colegiado do Tribunal para unificar a jurisprudência em matéria penal – deu provimento ao Recurso em Habeas Corpus nº 131.263, interposto pela Defensoria Pública do Estado de Goiás. A impetração apontava como ilegal a conversão ex officio da prisão em flagrante de um indivíduo em prisão preventiva – ou seja, questionava a admissibilidade da decretação de prisão preventiva pelo juiz de forma automática, sem prévio requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial.
A Defensoria Pública sustentou que alterações promovidas ao Código de Processo Penal por meio do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19) buscaram afastar o juiz da atividade persecutória estatal, em prol de sua neutralidade e imparcialidade, concretizando um dos alicerces do sistema acusatório – em contraposição ao sistema inquisitivo que caracterizava a redação original do CPP de 1941 e que ao longo do século passado foi abandonado pela maioria dos países democráticos.
Marco no processo penal brasileiro
Na prática, o entendimento do STJ – que tem grande efeito persuasório para outras cortes do país, embora não seja vinculante – estabelece que a prisão em flagrante, efetivada no momento em que um indivíduo comete um delito ou em momento imediatamente posterior, apenas poderá ser convertida pelo juiz em prisão preventiva caso haja requerimento do delegado de polícia ou do Ministério Público nesse sentido. Caso contrário, ao receber o auto de prisão em flagrante, remetido no prazo máximo de 24h a partir da prisão, o magistrado deverá relaxar a prisão ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, e com ou sem a imposição de medidas cautelares alternativas – a exemplo do afastamento de atividades, da proibição de frequentar determinados lugares ou do uso de tornozeleira eletrônica.
O julgamento representa um marco na efetivação do sistema acusatório no processo penal brasileiro. Sua relevância no contexto da reforma realizada pelo Pacote Anticrime se traduz desde o novo artigo 3º-A, introduzido no CPP, que dispõe que o processo deve possuir estrutura acusatória e, dessa forma, homenageia a garantia fundamental da imparcialidade da jurisdição e também as funções institucionais do Ministério Público – em conformidade com o artigo 129, inciso I da Constituição, que atribui somente a esse órgão o papel de acusador no processo penal. Efetivamente, não cabe ao magistrado comportar-se como órgão de acusação ou buscar suprir lacunas ou falhas da acusação ou da autoridade policial, como faria um juiz inquisidor, mas preservar as garantias fundamentais vigentes no marco do Estado de Direito.
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