A representação de tatuagens em avatares: direitos autorais e os direitos personalíssimos
A simulação de pessoas reais como avatares no metaverso traz discussões jurídicas sobre os direitos da personalidade e a proteção de obras autorais de terceiros
Assuntos
Como ponto de partida, cabe estabelecer a ideia de metaverso, mesmo que de forma ampla e abstrata, como ambiente virtual que permite interações entre os participantes, de forma reflexa ao mundo real. Dessa forma, é cada vez mais comum a representação de pessoas reais na forma de avatares, por meio dos quais se dá essa interação no mundo virtual.
Representando figuras reais, ocorre a reprodução quase idêntica das características e peculiaridades da pessoa escolhida. A partir disso, considerando que o metaverso proporciona a possibilidade de controlar e se utilizar de artigos virtuais, como veículos, armas, móveis ou roupas, é essencial que os desenvolvedores se atentem e respeitem os direitos de inventores, designers e titulares de sinais distintivos da mesma forma que o fariam no universo real, o que implica na estrita observância dos direitos de propriedade intelectual envolvidos.
Nesse sentido, surge também a discussão sobre a representação das tatuagens, como criações protegidas pelo direito autoral, vinculadas às pessoas que estão sendo representadas pelo avatar.
Direitos autorais
Os direitos autorais estão expressamente previstos na Constituição Federal brasileira, mais especificamente no artigo 5º, XXVII, de acordo com o qual se estabelece que pertence aos autores o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.
Esses direitos também são regulados especificamente pela Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98, “LDA”), na qual se protegem as obras intelectuais definidas como criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro.
A proteção assegurada aos direitos autorais possui uma dupla natureza, que contempla os direitos autorais patrimoniais e morais, conforme o artigo 22 da LDA.
Os direitos patrimoniais se referem à exploração econômica, ao direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Já os direitos morais, definidos como inalienáveis e irrenunciáveis pela LDA, conferem ao autor o direito de reivindicar a paternidade intelectual, de ser reconhecido como autor da obra e ter seu nome a ela vinculado, conservar sua obra como inédita, manter a integridade da obra, modificá-la, retirar sua obra de circulação, entre outros.
Tatuagens no metaverso: direitos autorais e direito à imagem
A LDA inclui dentre as obras intelectuais protegidas desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética. É nesse contexto que cabe analisar os direitos autorais referentes às tatuagens, já que o corpo humano pode ser considerado um meio tangível para se exteriorizar uma obra.
Para análise da proteção de tatuagens por direitos autorais, cabe analisar sua originalidade, já que não é possível, por exemplo, que uma data escrita sem qualquer adição criativa por parte do autor (tatuador) seja protegida. Uma vez reconhecida a proteção, o autor terá prerrogativas morais e patrimoniais, incluindo o direito de decidir sobre sua exibição em público.
Porém, tendo em vista a pessoa na qual a obra está inserida, é preciso ponderar os direitos em questão: o direito à imagem da pessoa tatuada e os direitos autorais do tatuador, já que a exibição da tatuagem é praticamente intrínseca à sua existência.
A questão da reprodução de tatuagens na representação gráfica de atletas em jogos online de esportes já suscitou debate ao redor do mundo, relacionado não só ao direito de expor os desenhos, mas também se algum tipo de remuneração ao tatuador poderia ser devida ou não.
Sendo, via de regra, uma questão multijurisdicional, considerando a ausência de fronteiras no metaverso, bem como o fato de que diferentes discussões podem surgir dessas representações (como exemplo, citamos discussões que podem ter origem desde o direito de reproduzir até o fato da reprodução desagradar o autor), é prudente avaliar como a situação vem sendo decidida em cada local antes de oferecer a solução ao mercado em geral.
Como parâmetro para a avaliação de limites, citamos a Regra dos Três Passos, estabelecida na Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário e determina que a utilização que não é autorizada deve ser um caso especial, não afetar a exploração normal da obra e não causar prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.
Em referência a discussões recentes semelhantes, vale citarmos ações ajuizadas por autores das tatuagens, em face de empresas desenvolvedoras de videogames, sustentando a violação de seus direitos autorais referentes ao desenho gráfico criado pela reprodução desses desenhos nos avatares digitais dos jogos de videogame.
Casos no exterior
Ausentes casos decididos no Brasil sobre o tema, menciona-se caso concreto estrangeiro, no qual o Tribunal do Distrito Sul de Nova York, da Justiça Federal dos Estados Unidos, decidiu em favor da requerida, uma empresa de videogames que desenvolvia avatares personalizados que representavam jogadores de basquete famosos, e, consequentemente, suas tatuagens. Nesse caso, o Tribunal se baseou na doutrina do uso de minimis, de acordo com a qual o uso de uma obra protegida por direitos autorais se restringe à uma porção mínima, insuficiente para produzir uma segunda obra que possa ser considerada substancialmente similar à primeira, de modo a não se configurar uma violação de direitos autorais.
Adicionalmente, o mesmo Tribunal também se pautou na doutrina da licença implícita (implied license). Sobre esse item, partiu-se de três premissas: os jogadores representados em forma de avatar solicitaram a criação das obras gráficas expressas nas tatuagens, os tatuadores criaram as tatuagens e a imprimiram em tinta na pele dos jogadores, e era provável que os jogadores, como figuras públicas, aparecessem em público ou na mídia com a tatuagem. Logo, inferiu-se que os tatuadores necessariamente concederam aos jogadores uma licença não exclusiva para usar as tatuagens de sua autoria.
A questão no metaverso pode ganhar contornos ainda mais complexos, dado que já existem até mesmo estúdios de tatuagens dentro desses ambientes virtuais que se dedicam a fazer tatuagens apenas nos avatares. As questões de direitos autorais ganham novos contornos, abrindo oportunidades para que os prestadores de serviço apresentem seus termos relacionados a esses trabalhos e para que os tomadores antecipem discussões relacionadas a seus direitos.
Portanto, observando os litígios como o acima apresentado, o que se verifica é que o mundo virtual também requer a estrita observância das normas referentes à proteção de propriedade intelectual do mundo real. E, no que tange a representação de tatuagens no metaverso, tanto os direitos da personalidade da pessoa representada quanto os direitos autorais do autor da obra gráfica expressa por meio da tatuagem devem ser levados em conta e protegidos.
Para mais informações, acompanhe a série especial Propriedade Intelectual e Metaverso.
*Com colaboração de Júlia Leite Contri e Lorena de Freitas Moraes Sampaio Pereira.