A territorialidade no exercício dos direitos de propriedade intelectual no metaverso
Como conciliar o exercício legítimo dos direitos de titulares que têm seus ativos de propriedade intelectual registrados em países distintos
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Diferentes legislações e princípios regulam os ativos e os direitos de propriedade intelectual ao redor do mundo. Com a ausência de fronteiras geográficas nos metaversos, vêm à tona preocupações quanto à (não)observância de princípios, como o da territorialidade, o que pode ensejar conflitos ainda sem jurisdição específica para dirimi-los.
A questão territorial dos ativos de propriedade intelectual
Na obra “Propriedade Intelectual: o princípio da territorialidade”, Thais Castelli, doutora em Direito das Relações Econômicas Internacionais, esclarece que “(…) enquanto o direito da propriedade industrial requer um registro local (ou uso) para atribuição da titularidade territorialmente delimitada, o mesmo não ocorre com o direito de autor, cuja titularidade deve ser reconhecida pela simples exteriorização da obra em qualquer localidade.”.
Nesse sentido, ressalta-se que a propriedade intelectual – cujo objetivo é proteger o criador contra exploração indevida, permitindo o retorno financeiro e gerando valor para aquele ativo intangível – é, em regra, dividida em propriedade industrial e direitos autorais.
Enquanto os direitos autorais relacionam-se ao setor criativo, a propriedade industrial está relacionada ao setor produtivo, em que se encontram, entre outros ativos, marcas, patentes e desenhos industriais.
Como mencionado acima, as obras e/ou criações não precisam ser registradas para serem protegidas por direitos autorais, de forma que os autores exercem seu direito em qualquer local, com proteção extraterritorial, notadamente dentre os países signatários da Convenção de Berna.
Diferentemente delas, os direitos sobre ativos de propriedade industrial somente são exercidos por seus titulares após a obtenção do respectivo registro ou patente e no local de sua ocorrência, como dispõe, por exemplo, a Lei da Propriedade Industrial brasileira (LPI) em seus artigos 6º (patentes), 109 (desenhos industriais) e 129 (marcas).
Tais disposições fundamentam-se, portanto, no princípio da territorialidade, que foi consagrado na Convenção da União de Paris de 1883, responsável por estabelecer a proteção para ativos de propriedade industrial nos territórios em que tenham sido concedidos, como mencionado em nosso artigo Uso e proteção de marcas no metaverso: desafios jurídicos à luz da legislação brasileira.
A territorialidade e o metaverso
Os bens de propriedade intelectual são considerados bens incorpóreos móveis, de forma que, ainda que sejam bens apropriáveis, não possuem um suporte físico. Dessa maneira, a propriedade desses ativos é regida por normas específicas que estabelecem os respectivos direitos e deveres.
Nesse sentido, as normas pertinentes ao direito de propriedade intelectual estarão intimamente ligadas ao ordenamento jurídico em que o titular/autor do bem se encontrar, sendo, portanto, harmônicas com a Constituição, demais normas infraconstitucionais, princípios, costumes e jurisprudência locais.
Por conseguinte, a territorialidade mencionada acima é fundamental para fins de proteção dos direitos de propriedade intelectual, sejam de vertente autoral ou industrial. Dessa forma, emergem-se preocupações relacionadas à utilização de tais bens em ambientes relacionados à web 3.0, como o metaverso, visto se tratar de espaço virtual sem fronteiras geográficas claramente delimitadas.
Ativos de propriedade industrial
No Brasil, vigora o sistema atributivo de direito de propriedade industrial, de maneira que a propriedade e o direito de uso/exploração exclusiva do ativo pelo titular se dão a partir do respectivo registro/patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Em outros países ou regiões não é diferente, sendo cada jurisdição soberana para conceder ou não proteção a determinados ativos. Como outro reflexo da independência entre os ativos de propriedade industrial, aliás, tem-se que uma mesma marca ou uma mesma invenção, podem ser, respectivamente, objeto de registros e patentes diversos pertencentes a sociedades não relacionadas.
Em nosso artigo anterior, apontamos os desafios de exercer a exclusividade de uma marca dentro de um ambiente virtual. Pertinente destacar que o registro ou o uso que garante a titularidade da marca está ligado ao território em que esta foi registrada ou utilizada pelo titular, de forma que este só terá o direito exclusivo de seu uso e capacidade para obstar a sua utilização indevida dentro dos limites geográficos de sua titularidade.
Com efeito, os sistemas já vigentes relacionados ao registro de nome de domínio e soluções de disputas capitaneados pela Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN), notadamente no que se refere ao uso de marcas como parte de nome de domínio, são bases interessantes que demonstram como lidar com o uso de ativos de propriedade industrial concedidos por jurisdição, em um contexto de exploração transfronteiriça. Por exemplo, desde que seja demonstrado indício de má fé no uso da marca comercial de terceiros, em qualquer jurisdição, esse poderá se opor ao uso de sua marca sem autorização como parte de um nome de domínio.
No contexto dos metaversos, interessante notar como os desenvolvedores irão harmonizar os direitos de titulares diversos, preservando os direitos individuais em cada jurisdição aplicável.
Direitos autorais
Saindo da esfera industrial e adentrado a autoral, por oportuno destacar questões pertinentes as quais devem ser reputadas. Uma delas diz respeito ao direito moral dos autores frente à diferença entre os sistemas do droit d’auteur, adotado por países como o Brasil e a França, e o sistema do copyright, vigente em países como os Estados Unidos e o Reino Unido.
A Lei de Direitos Autorais brasileira (LDA) prevê não apenas o direito patrimonial aos autores das obras, como também o respectivo direito moral, conforme estabelecido em seu artigo 24. Nessa toada, o jurista Adriano de Cupis aduz que o ordenamento jurídico nacional tutela o direito de paternidade autoral representado pelo vínculo espiritual indissolúvel entre o autor e a sua obra, a fim de resguardar, portanto, os seus direitos de personalidade.
Divergentemente, países que adotam o sistema do copyright possuem maior enfoque no aspecto econômico da obra, e por conseguinte, o resguardo aos direitos morais autorais é comparativamente reduzido. Logo, o autor que cria e utiliza uma obra dentro do território brasileiro, terá os seus direitos morais mais bem resguardados do que se o fizer nos Estados Unidos, por exemplo.
Contudo, ao deslocar a análise da utilização e criação de ativos de propriedade intelectual para o metaverso, questões como as delimitadas acima ainda não foram padronizadas e ainda são juridicamente dúbias.
Isso encontra especial fundamento no caráter intangível dos bens de propriedade intelectual, o que facilita a transposição de barreiras e a multiplicação simultânea destes bens por vários territórios.
Com a ausência de fronteiras geográficas e legislações específicas, a utilização de bens de propriedade intelectual no metaverso pode ensejar conflitos que ainda não possuem uma jurisdição específica para respaldá-los, devendo-se pensar em meios alternativos para tanto, como a definição de regras específicas dentro de cada metaverso criado.
Para mais informações, acompanhe a série especial Propriedade Intelectual e Metaverso.
*Com a colaboração de Ana Flávia Marques e Nathalia de Assis Siqueira.